quinta-feira, 5 de setembro de 2024

2009, março - Revista IEB número 48 - Instituto de Estudos Brasileiros - publicação semestral

 

  Revista ieb 48

      Ficções de Heloisa Pires Ferreira


Leon Kossovitch  1
2009

Revista do Instituto de Estudos
Brasileiros

ISSN: 0020-3874
revistaieb@usp.br
Universidade de São Paulo
Brasil
Kossovitch, Leon; Laudanna, Mayra
Ficções de Heloisa Pires Ferreira
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, núm. 48, marzo, 2009, pp. 107-140
Universidade de São Paulo
São Paulo, Brasil
Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=405641270006
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Ficções de Heloisa Pires Ferreira
Leon Kossovitch1
Mayra Laudanna2
Resumo
Apresenta-se aqui, a obra e a linguagem de Heloisa Pires Ferreira a
partir de suas gravuras e tecidos, assim como de diversas entrevistas
concedidas pela artista.
Palavras-chave
Artes, Estética, Gravura, Bordado, Linguagem.

1 Professor Doutor do Departamento de Estética da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). São Paulo, Brasil.
 

2 Professora Doutora da Área de Artes do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo ( IEB – USP). São Paulo, Brasil. E-mail: mayra@usp.br
 

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Fictions d’Heloisa Pires Ferreira
Leon Kossovitch
Mayra Laudanna
Résumé
Il s`agit ici de la présentation de l´oeuvre et du langage de Heloisa Pires
Ferreira à partir de ses gravures et des ses étoffes, aussi bien que de
plusieurs entretiens tenus par l´artiste avec des différents interlocu-
teurs.
Most-clefs
Arts, Esthétique, Gravure, Broderie, Langage
 

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Heloisa Pires Ferreira’s Fictions
Leon Kossovitch
Mayra Laudanna
 

Abstract
This article presents Heloisa Pires Ferreira’s work and language throu-
gh an appraisal of her engravings and fabrics, as well as from many
interviews given by the artist.
Keywords
Art, Esthetic, Engraving, Embroidery, Language.
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Jubila Heloisa Pires Ferreira na fala, que, fonte, fá-la nas-
cer: mais que instrumento que cubra o silêncio no qual a artista se teve
por muito tempo aprisionada, a fala é o solo de que brotam os atos que a
declaram liberta. Fabulação de evento, a fala incide em duas narrativi-
dades discursivas que preceituam a arte e a linguagem, às quais desloca
quando se ergue como educadora na cura e na libertação (1). Nessa as-
censão, a fala faz florescer enunciados ficcionais, que partilham com as
proposições técnicas a arte e a linguagem de Heloisa. Também é nesta
fabulação que a fala expõe a artista como dispensadora do bem, sem, por
isso, retirar da linguagem a função discursiva em que a verossimilhança
técnica domina. Não se situando na derivação de uma linguagem única
que se estabeleça como primitiva enquanto discurso técnico, a arte de
Heloisa tampouco se reduz, com a fala que a envolve, a efeito ou aplica-
ção; quanto à inoperância de hierarquia entre a linguagem e a arte, am-
bas se explicitam tecnicamente equivalentes, o que as faz espelhar-se,
como discursivas, em abismo. Entretanto, como ambas, enquanto dis-
cursividades procedimentalmente verossímeis, estão separadas da fala,
a fabulação, nesta, é o que as envolve com narrações vindas de outra
vertente: miraculadas em seus efeitos, a arte e a linguagem se fazem
admirar, pela fala, no gênero do maravilhoso.

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A fala da artista
1 No Sesc eu podia aliar, de repente, essa questão da gravura e do
meu sofrimento, criando um espaço onde as pessoas pudessem
resolver o sofrimento delas […]. Quando eles me chamaram
para montar a oficina de gravura, eu disse que podia fazê-la
se estivesse ligada com a palavra – como já disse anteriormente. Considerando a minha dificuldade de falar, eu dizia: “não
posso ser coordenadora de nada, eu não falo!” A Leonor Gal-
vão disse para mim: “você tem essa dificuldade, mas você tem
idéias, eu as entendo, aliás só entendo algumas, imagine as
que não entendo? Você tem que vir coordenar, nós queremos
você e pronto”. E eu pude realizar isso com a palavra, porque
insisti em que tínhamos de mexer com essa questão da palavra
e desmistificar o papel do artista perante os outros: com as en-
trevistas deles, as pessoas poderiam ver o que era o fazer de-
les. Mesmo o Newton Cavalcanti, que tem dificuldade de falar,
falou da gravura dele, falou maravilhosamente, porque dentro
da confusão lá da palavra dele, ele pôde contar como era o pro-
cesso dele. E assim aconteceu com o próprio Antônio Grosso,
que é uma pessoa tímida, o Roberto Magalhães e outras que
não são tímidas, como o Carlos Scliar. Conseguimos fazer as
entrevistas – tenho certeza de que aquilo foi importante – e pu-

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A linguagem opera como discurso com a arte no abismo dos ve-
rossímeis técnicos, espraiando-se entretanto como fala: com esta, a arte
se ficcionaliza, de modo que o maravilhoso se estende não só a elas,
como também à própria protagonista, exposta no cruzamento da des-
crição miraculada da política e da terapêutica, cujo princípio prático é a
pedagogia da fala emancipada (2); a protagonista, como narradora, é a
biografada nas descrições, que lhe traçam um retrato epidítico. Estando
excluída toda precedência, a convencional do realismo e do idealismo,
ainda hoje normatizadora dos discursos, o entrecruzamento da lingua-
gem e da arte dispensa o raso e o profundo da subjetividade: a autoria,
na fala de Heloisa, anda nos enunciados técnicos e nos fabulosos, desan-
dando nos efeitos da enunciação as concatenações discursivas.
O bordado e a gravura distinguem-se na pesquisa artística de He-
loisa: os enunciados técnicos que deles tratam se metamorfoseiam na fala
em que se libertam da temporalidade do sucessivo, como a especificada
pelas periodizações, pois cruzadas por linhas cursivas e recursivas nas
quais se singularizam pontos que, expondo inflexões ou rupturas, não
anulam, contudo, tendências e constâncias. Sendo impertinente, nessas
artes, a suposição de fases no concernente à fala, não há nascimento em-
pírico ou conceitual da obra e da artista na ficção que mostra, fora dos
verossímeis discursivos, devires, metamorfoses, contrastes, todos eles
alheios a hierarquias e sentidos dados. O paralelismo da ficção na arte
e na linguagem, desdenhando a subordinação de uma à outra, solta a
fábula, que, valorizando o diálogo na fala, faz entrar e sair personagens
da cena epicamente representada. Como as prosopopéias efetuam o épi-
co tanto com falas centradas na artista, quanto com as dos personagens
que com ela dialogam, a dramatização pode desenrolar-se diante de ce-
nários, como os de sessões de gravura e bordado, mas também os de
aula, assim como os de rua: são hipérboles operadoras de metamorfoses
sem localização ou agente prefixados, podendo alegorizar-se personifi-
cações, como as obras, repentinamente falantes.
Não se hierarquizando, na fala, a linguagem e a arte, propõem-se
os gêneros epidítico e deliberativo, associáveis à terapêutica e à políti-
ca; por eles, a fala é evidenciada encenadora dramática dos conflitos do
Brasil, da América Latina e, em geral, do mundo explorado pela finan-
ça. O épico, na fala, que é hipérbole inclusiva, não diferencia a atuação
política do retiro reflexivo, de modo que a personagem central, a um
tempo testemunha, educadora e doadora, joga com o contraste no qual o
maravilhoso é efetuado como quiasma: amplificando os termos, o polí-
tico pode ser mostrado como contemplação anticonformista e a contem-
plação, como intervenção deliberativa. Maravilhoso, o quiasma suscita,
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blicar três volumes do livro Gravura brasileira hoje. Eu posso,
através da minha fala, também despertar o outro e ele começar
a falar das questões dele.1
2 Tinha o sofrimento que você via em toda a situação – como é
asfixiante, prepotente, alguns poderosos dominando e massa-
crando o resto. Nessa época, eu era inteiramente massacrada
– hoje não sou mais –, era massacrada e o sofrimento era muito
maior do que qualquer outra coisa. 2
Então, ou eu morria ou eu me expressava, mas eu não podia me
expressar por palavras, eu comecei a ter consciência de que a mi-
nha educação, a nossa educação, era para sermos do silêncio. 3
É como se eu tivesse crescido. Naquela época, eu tinha um su-
foco, e ele era tal que eu não podia nem falar. Nós saíamos
de uma ditadura e na ditadura nós não falávamos mesmo: eu
tinha que aprender a falar. Não sabia falar ainda e, ao mesmo
tempo, tinha que falar, porque tinha que falar. 4
É como a criança, ela murmura, ela faz ‘uoem’, você pensa que
ela está chorando, mas não, ela está aprendendo a falar. 5
3 Nós éramos da cultura do silêncio, então eu não podia... Na-
quela ocasião, eu jamais falaria com você como eu falo hoje,
jamais. […] Nesse rolo todo, eu fui convidada para montar uma
oficina de gravura no Sesc, isso no final de 82, quando eu fazia
uma grande exposição na Cândido Mendes.
1 FERREIRA, Heloisa Pires. Entrevista concedida a Mayra Laudanna. Cotia: Ateliê
Editorial, 2001. p. 49-50. (Entrevista de Artista).
2 Idem, ibidem. p. 6-7.
3 Entrevista concedida por Heloisa Pires Ferreira a Mayra Laudanna. Rio de Janei-
ro, 2000, sem edição. Editada e revista pela artista, a entrevista foi publicada pela
Ateliê Editorial, em 2001.
4 FERREIRA, Heloisa Pires. Entrevista concedida a Mayra Laudanna. Cotia: Ateliê
Editorial, 2001. p. 6. (Entrevista de Artista).
5 Ver nota 3.
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no cotejo, paixões extremas, em que a arte e a linguagem, por um lado,
e a contemplação e o empenho, por outro, se expõem como a epopéia
de duas navegações cruzadas, da que singra o mundo, limpando-o da
imundície, da que mergulha na biografada, corrigindo, ela também
mundo, aquele imundo.
O paralelismo das duas descrições ficcionais na relação das duas
direções épicas não impede que, além dos percursos traçados pelos te-
mas, exponham-se os périplos das insistências em que os significados
deslizam, ora amarfanhados, ora escapados, ora cobertos. O épico en-
cena, na fala, a própria artista seguindo tais périplos, não só como tes-
temunha central dos eventos narrados, distinta, como sujeito do enun-
ciado, das mais personagens que evoluam cá e lá como protagonistas
ocasionais em cenários a eles adequados, o morro, a escola, a oficina, o
lar, todos eles intercambiáveis em ação alheia a precedências, mas tam-
bém como sujeito da enunciação, com suas rasuras e mais apagamentos.
Considerados esses dois sujeitos da linguagem (3), a fala de Heloisa sobre
a gravura não antecipa os temas aos procedimentos, nem, inversamen-
te, as articulações gráficas e discursivas aos significados épicos ou ou-
tros, pois tudo gira, não só deliberativa e epiditicamente, como também
imprescrita e bizarramente. Os saltos, furos, vacilações, reforçam, no
que concerne à epopéia de Heloisa, os efeitos maravilhosos de devires e
metamorfoses, operantes tanto na significação associada às ambigüida-
des e contradições dos temas, quanto, ressalte-se, na articulação ligada
às heterogeneidades e sobreposições das técnicas e mais procedimentos
nos bordados em tecidos e nas gravuras em papéis que as oscilações na
enunciação repropõem.
A epopéia, por narrar na linguagem e na arte em seqüências de
enunciações e gestos, respectivamente, é distinguida por escansões, as
quais, diferenciando, não raro descontinuam, com os deslizamentos da
fala, os significados, que se amarfanham, se recobrem, se desprendem.
As duas epopéias, que à narradora incluem, são ou costuradas por jus-
taposições de pedaços ou interrelacionadas por partes de composições
transicionais. O maravilhoso na ficção de Heloisa é, assim, o resultado
da conjunção das duas epopéias, muita vez indiscerníveis na fala que a
ambas abrange, mas também é o produto do devir em que, seja por efei-
to de proximidade, pela qual os pedaços se afetam sem se interceptar
e sem se modificar, seja por efeito de passagem, pela qual a metamor-
fose, por intersecção, a todos modifica. O maravilhoso salta, assim, da
conjunção de seres contrastados e seus devires, evidenciados em sua
presença recíproca; é nos devires que se declaram as metamorfoses e
nas metamorfoses, os devires, modificando-se os termos da linguagem e
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Eu tinha que ir estudar, foi um dos motivos de eu falar para
a pessoa do Sesc que eu não estava interessada. Eu não podia
ficar presa lá, dando aulas, ensinando gravura, nada disso não,
porque ou eu morria ou eu ia para os lugares. Mas eu não disse
isso para ninguém, primeiro porque eu não tinha como dizer,
porque eu não falava [...], então, como dizer: “eu tenho que ir
para a Embaixada do Chile”.
Mas eu não tinha pressa, então não tinha problema, e fiz uma
série de pastéis, uma série de aquarelas, fiz uma grande ex-
posição na Cândido Mendes, e me convidaram para essa coisa
da gravura lá no Sesc. [...] A vida te traz essas coisas nas fuças,
você tem que deixar… tem que ir. Porque ela te traz isso, por-
que era aquela hora. 6
E eu, quando eu ficava perdida [...], eu desenhava, desenha-
va, desenhava e, ao mesmo tempo, [...] com eles, eu dava aulas
desde criança [...] na favela, não era bem na favela, era dentro
de uma escola pública, aos domingos, e os favelados todos iam
para lá. O Osmar não freqüentava, ele não curtia essa coisa de
ficar dando aulas para os pobrinhos, ele não curtia, mas ele ia
às reuniões, que começavam às oito horas da noite e acabavam
à uma da manhã, em que se ficava analisando todos os cursos
que a gente tinha dado no dia. Isso aos domingos, que começa-
vam a uma da tarde e acabavam às sete da noite, passava filme,
eu era assim um speed boy, pau prá toda obra: eu ia buscar fil-
me, [...] eu preparava as tintas, cortava os papéis.7
Era a primeira a chegar, porque adorava aquilo, e ficava o dia in-
teiro. Eles me contaram, agora, que tinham a maior dificuldade em
se relacionar com aqueles meninos – uns já eram homens, eu tinha
uns quinze anos e havia garotos de dezoito, mulheres de dezoito,
porque no morro são mulheres, e com filhos. Eu tinha que apren-
der tudo com a Maria Lúcia, o Rogério, porque eu era uma debilói-
de completa. E eles me contaram que ficavam de olho naquilo que
eu fazia, porque eu conseguia me comunicar com aquelas pessoas
com muita facilidade. Isso eu não conseguia com eles, mas quando
estava com essas pessoas, eu era completamente diferente: tinha
6 Ver nota 3.
7 Ver nota 3.
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da arte: modos, os termos ou se imantam ou entre si transitam, a ambas
determinando. Na presença de termos a termos, há efeitos de contraste,
definindo-se, por este, os devires e as metamorfoses que têm a polarida-
de por referência. Eclodindo o maravilhoso tanto nos contrastes quanto
nas metamorfoses e devires, neles se abre a vasta floração das modi-
ficações. São devires, em que os termos metamórficos não requerem
a homogeneidade de um conjunto, pois podem ser atribuídos a séries
heterogêneas, assim, nas gravuras de mapa e animal, que apenas pela
evidência política constituem série. Aderida à linguagem e à arte, a fala
fabula, pondo-se a deliberar e a demonstrar às expensas dos verossímeis
do discurso técnico, no que as descontinuidades da enunciação não co-
lidem com a ficção, antes a ampliam, sendo seus efeitos multiplicados
por não se as poder incluir em qualquer gênero porque produzidas como
heteróclito, evidentemente imprescrito e inverossímil.
Como nas metamorfoses e nos devires, nos contrastes, de que as
conjunções são espécies, brotam maravilhas: aproximados, Karl Marx e
Rudolf Steiner, mas, não menos, o ensino dado na sobrevivência de fave-
lados do Rio de Janeiro e o oferecido na vivência de escola antroposófi-
ca de São Paulo, luzem no cotejo de Heloisa (4). Esses pares de termos,
que podem ser considerados excludentes como incompatíveis quando
politicamente relacionados, uma vez postos em presença, operam ma-
ravilha, dramatizando a fala; em tal bizarria, tanto a política quanto a
terapêutica surgem, admiráveis, pois, suspendendo a mirada, soltam-se
dos verossímeis discursivos: no cotejo dos termos polares, o que fascina
é a fala, em detrimento do discurso que os tem como politicamente ex-
cludentes. Do verossímil, o discurso da política, da terapêutica e da edu-
cação, que a ambas sustém, encanta na fala envolta de admiração; sendo
contidos os argumentos do discurso, maravilhadora, a fala opera com
junções extravagantes, que, inverossímeis, desdenham o gênero humil-
de da análise, diluída pelas alturas dos entimemas dramatizadores.
Encantatória, a fala joga com contrastes, não com contradições, que
só no discurso se produzem entre termos, pois a educação de Heloisa en-
volve a política, lançando-a no imprescrito da contemplação empenhada
e da intervenção extática, principalmente no extremo da dor, registrada
na baixeza da ditadura militar, atro teatro de seu silêncio. Embora dois
silêncios se assinalem na artista, o que, indeterminado, a persegue desde
a infância, e o que se define como político pois exposto pela ditadura bra-
sileira, é este que põe em evidência a educação, portanto a fala, contras-
tadas com a mudez e a dor, que assinala a saída de Heloisa do ensino em
escola de favela, sua chegada ao que chama “individualismo”, no qual o
trabalho artístico a mantém calada, e sua ascese à instituição steineriana
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uma paciência muito grande, um carinho muito grande e ensinava
tudo, tudo e catalisava a capacidade criadora deles. 8
4 Como eu mexia com as pessoas das favelas, com as pessoas
pobres, pensei em fazer serviço social, só que, quando entrei
na Faculdade, vi que não era nada disso, absolutamente. Aque-
las pessoas me diziam coisas que não tinham nada a ver com
aquela realidade que eu tinha vivido durante dois anos, então,
não era aquilo que eu queria. Eu fui pegar na Faculdade os
meus papéis de volta... […] Então pensei: “tenho que estudar
as escolas” e lá fui eu estudar as escolas para ver se era aquilo
que eu queria. Tinha uma escola Waldorf aqui no Rio, peque-
nininha; fui lá conversar com a moça e ela me disse: “olha, nós
estamos fechando, mas tem uma grande escola em São Paulo
e lá você pode estudar, você pode tudo”. Aí fui a São Paulo e, já
que eu não podia falar, escrevi tudo o que achava de educação,
o que pensava que era e fui. Conversei com eles e acho que gos-
taram muito de mim, porque me quiseram na hora. Aceitaram-
me como professora auxiliar, no jardim da infância […].
Na Rudolf Steiner [Waldorf] foi um ano muito bom: tive aula de
filosofia, da filosofia deles, aula de desenho, de xilo, de carpinta-
ria, de teatro, de voz. Tinha um clima de arte; era como se você
só pensasse em arte: música é que era importante, ballet é que
era importante e as outras questões entravam como complemen-
to daquelas. Vamos dizer: enquanto a escola tradicional coloca
todo o saber intelectual como máxima e a parte do sentimento
fica completamente jogado à deriva, na Waldorf eles juntam as
duas coisas. A sensibilidade tem o mesmo valor que o pensamen-
to, então, tua emoção e teu pensamento andam na mesma ban-
deja, juntos com a tua vontade. Eles trabalham muito a vontade
de você executar o que pensou e o que sentiu. 9
Voltei para o Brasil. Me lembro que fui direto para Pernambuco
e Paraíba, para ficar com o Altino, que já estava morando lá.
Passeei muito com ele por lá e vi o contraste: sair de Veneza
8 FERREIRA, Heloisa Pires. Entrevista concedida a Mayra Laudanna. Cotia: Ateliê
Editorial, 2001. p. 24. (Entrevista de Artista).
9 Idem, ibidem. p. 25-27.
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referida (5). Tal sofrimento, sua “depressão”, a artista o dramatiza com a
hipérbole que contrasta o oficialismo da mudez e o florescimento da fala,
de onde o mote da demanda: que os alunos e colegas nunca abram mão
da fala e que, como a Professora, nunca desistam de insistir. A saída da
depressão ou, o que é o mesmo, o nascimento para a fala, dá-se na narra-
ção dramática que tem por cena o Portugal da Revolução dos Cravos, onde
Heloisa aprende, não sem dor, a liberdade (6). O contraste rebate-se, por
isso, em outros pares de termos, não menos opositivos, como treva e luz,
que o reinterpretam: para Heloisa, o silêncio é seu pretejamento pessoal
e, ainda mais, o obscurecimento ditatorial, só sendo abolido quando se al-
teia, iluminado, o falante. É certo que, genericamente, o silêncio escurece
tanto a fala quanto a arte, ainda que Heloisa declare ter trabalhado como
artista apesar da mudez sofrida; embora tenha permanecido calada e sua
arte não tenha desaparecido (7), esta não é tida, porém, como emancipa-
da, estando a fala seqüestrada. Conseqüência disso é não só a demanda,
assim, a fala ocuparem lugar central em Heloisa, pois, enquanto a maior
parte dos artistas ou a alheia ou a instrumentaliza como se se tratasse
de um acessório dispensável, ela a tem como constitutiva da arte. A fabu-
lação educacional demonstra, assim, a eficácia da retórica na fala como
política e terapêutica, não na pedagogia institucionalizada, mantenedora,
como diz, do silêncio.
Do maravilhoso enquanto fala, a gravura e o bordado de Heloisa
jogam com as espécies do contraste, como a contradição, a ambigüidade
e o paradoxo, com os quais se produzem devires imprescritos, metamor-
foses heterogêneas, correlações bizarras. Como ficcionais, a gravura e o
bordado ora convergem ora divergem, e isso tanto no plano iconográfico,
quanto no técnico e no retórico, nos quais se rebatem as operações. Os
três planos expõem o que o binário forma-conteúdo, por sua indigência
conceitual, não pode fazer, pois, nas gravuras, a figuração, com seus pás-
saros, sóis ou mapas, é iconograficamente a dos tecidos; tecnicamente, os
procedimentos da gravura são homólogos aos dos panos; retoricamente,
as fabulações na gravura e no bordado se correspondem, dramatizando-
se como maravilhosos seus rebatimentos nos três planos da ficção.
Tecnicamente, o bordado tem, com o suporte, relação distinta da
que mantém a gravura com o papel na obra de Heloisa: enquanto na
gravura as inscrições se produzem em um suporte homogêneo que com
elas se modifica, no gerar mudanças cromáticas e luminosas com o bor-
dado o suporte é evidenciado heterogêneo, feito de pedaços de tecidos,
diferentes uns dos outros quanto ao fio, à tessitura e à estampagem que
se ligam por meio de costuras com a aparência de bordados, os quais
podem limitar-se aos recortes dos panos ou atravessar-lhes as bordas. O
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que visitei como bolsista e dar de cara com a pobreza do Brasil
é uma coisa muito complicada. Aí, entrei em um outro tipo de
cabeça, diferente daquela cabeça com que saí daqui. Eu saí
daqui em depressão, já tinha acabado a depressão, que nunca
mais voltou, e a coisa que veio era ligada com a questão social.
Comecei a ver aquilo tudo que o papai me empurrava para ver
desde que eu era pequena. Via, mesmo porque, de certa forma,
estudei Marx: estudei com o Elias Cassibe, ele já morreu, ele
também fez gravura, e com o Antônio Carlos Rocha, meu mari-
do. Nós estudamos uns dois anos O Capital, isso em 71, 72, […]
tudo escondido.10
5 Aos quinze, dezesseis anos, participava de um projeto com Ma-
ria Lúcia, Rogério, Luiz e Hugo Tomassini, mexendo com artes
na favela de Santa Teresa. A gente fazia os chamados Domin-
gos de Criação.
Até 1965, mantive esta atividade, mas o governo a proibiu. Na ver-
dade, foi em 66 que veio a proibição de se continuar utilizando
o espaço das favelas para questionar coisas. Então me desliguei.
Não tive condições de continuar o trabalho, e fiquei muito depri-
mida. Rogério e Maria Lúcia foram morar na França – ela ficou
uma temporada e ele ficou mais tempo – e eu passei a me dedicar
à minha arte, num trabalho muito individual, individualista mes-
mo. Fui para São Paulo, trabalhei na escola antroposófica.11
6 Aquele ano foi fantástico e, apesar disso, eu tinha depressão:
eu era uma deprimida ambulante… Aquele ano não, aquela dé-
cada, aquela coisa preta, que só foi acabar quando fui embora
para Portugal. Sabe quando começou a acabar? Cheguei a Lis-
boa, fui direto para um hotel e tinha de levar um pacote que a
minha prima havia mandado para o Banco do Brasil. Um peso
desgraçado; eu queria me livrar daquilo mesmo porque não fui
10 Idem, ibidem. p. 46-47.
11 FERREIRA, Heloisa Pires; LUZ, Maria Luiz (Coord.). Gravura brasileira hoje: de-
poimentos. Rio de Janeiro: Oficina de Gravura Sesc Tijuca, 1997. v. 3, p.40, 42.
120 revista ieb n48 março de 2009
amarfanhado não opera nos panos, como nos doados pela artista ao IEB
[Figs. 1 e 2], diferindo dos tapetes, que Heloisa ocasionalmente produz
e nos quais o enrugamento do material é constitutivo da obra, pois com
ele se modificam tanto suas cores quanto seu brilho.
Embora o bordado seja a arte com a qual Heloisa se inicia, é a
gravura, mais que o desenho e a aquarela, que insiste em sua fala. O
devir dos bordados cruza o das gravuras, estando ambos associados a
figuração comum, assim, seus pássaros, à diferença, decerto, dos supra-
aludidos tapetes, dispensados da figura. Heloisa supera, com isso, as
restrições materiais que especificam cada arte, podendo propor-se uma
estética geral para o conjunto de sua obra, na qual a cor, intensíssima
porque saturada, opera como traço comum. Conquanto seu efeito se ate-
nue na gravura, pois a incisão com traços curtos e justapostos de buril,
correspondentes aos efeitos homólogos do bordado, não tem a intensida-
de cromática das linhas conduzidas pela agulha. O resultado técnico nas
duas artes é a saturação cromática a ambas comum, no que a diferença
intensiva pode ser atribuída apenas à matéria. Embora suportes, o papel
e o tecido são ativos na produção da cor: o bordado e a gravura podem
ser tidos equivalentes, considerada a saturação cromática em ambos
operante [Fig. 3]. Materialmente, como o buril é o instrumento de Heloi-
sa na produção de incisões curtas, seu uso corresponde ao trabalho da
agulha nas linhas breves que se justapõem e, não raro, se sobrepõem em
seu bordado, correlacionando-se, assim, não só os efeitos de saturação
da matéria, como também os gestos e os instrumentos de que essa pro-
vém, o que reafirma a inclusão das duas artes em uma estética comum.
A ênfase dada ao buril não apaga outras técnicas de gravação em He-
loisa; na calcogravura, a água-tinta opera efeitos pictorialistas, enquanto
a xilogravura, ocasionalmente empregada com o metal, entremostra-se
em efeitos análogos na variação produzida pela impressão da superfície
da placa de madeira de fio. Nesses procedimentos, a arte do tecido está
próxima da gravura, delimitando as áreas em que as linhas de bordado,
como as de costura, definem as superfícies dos pedaços de panos que ope-
ram pictorialmente em seus limites. Outras correlações se estabelecem:
os recortes das placas de cobre gravadas [Fig. 4] equivalem aos pedaços
de panos recortados, uns aos outros fixados por costura; equivalem-se,
também nesse cotejo, as reverberações produzidas graficamente pelas
incisões do buril e as dos tecidos, sejam estes brilhantes, ou não. Conste-
lação [Fig.5] exemplifica os traços que aproximam essas características
da gravura às dos tecidos bordados: incisões e variações de superfícies na
calcogravura e na xilogravura são homólogas às operações nos panos. O
metal e a xilo expõem campo com miríades de figuras arredondadas que
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com a cara do hotel em que havia ficado. Fiquei insegura: “se
isto some, essa minha prima me mata”. Quando estou andando
na rua – eles me explicaram como é que se chegava até lá a pé
–, dei de cara com o maior painel do Partido Comunista. Isso
não existia aqui, Partido Comunista, grandão, Comuna. Saí do
Banco e entrei na tal Comuna, que era um lugar onde tinha
livros, tudo o que você pudesse ler. Acho que a minha cabeça
começou a rodar. E teve outra coisa: uns dias depois, fui conhe-
cer o Museu das Janelas Verdes e me perdi. Já estava ficando
escuro e comecei a ficar com medo: não conhecia direito o lu-
gar, tinha saído daqui do Brasil, ditadura completa, onde você
tinha medo até de olhar assim… Tinha um polícia ali, fiquei
mais gelada do que nunca, mas era a única pessoa que tinha
por ali para eu perguntar: “o que faço? Está ficando escuro,
como é que vou voltar...”, cheguei para ele e falei: “meu senhor,
pá-lá-lá”, ele era de uma educação, de uma gentileza. Não ti-
nha nem revólver! Só tinha cassetete, mais nada, eu reparei
bem. Ele me ensinou até onde eu tinha de ir, me colocou dentro
do ônibus que me deixou onde eu ia, todo educado. Aí, eu tirei
um casaco de mim, um alívio: “você está num outro mundo,
você está num mundo onde tem pessoas educadas”. Aqui você
fugia de qualquer polícia, não é? E ele viu logo que eu não era
de lá, podia aprontar comigo... Nada, foi educadíssimo. Acho
que a minha cabeça foi se abrindo, embora fosse inverno, tinha
frio, tinha mil coisas de que eu podia não gostar, mas tinha
um outro lado: eu estava completamente solta para olhar, para
ver, para ler, para pesquisar, para isso, para aquilo, para ir a
todas as Comunas, a todos aqueles festivais dos comunistas…
A primeira coisa que li foram os volumes do Marx. Eu o tinha
estudado aqui, no livro do papai.12
7 Nessa época, eu trabalhava muito. Como não dormia a noite
inteira, tinha insônias eternas, não tinha para que dormir, eu
passava a noite trabalhando. Dizia para mim mesma que vaga-
bundo passa ao largo: “se você não quer dormir – não é que não
quisesse dormir, não conseguia, um lado meu não queria dor-
12 FERREIRA, Heloisa Pires. Entrevista concedida a Mayra Laudanna. Cotia: Ateliê
Editorial, 2001. p. 39-41. (Entrevista de Artista).
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se apegam ao fundo como se estivessem nele costuradas. O gesto da inci-
são é, por sua vez, homólogo ao que costura pedaços de tecidos, também
sendo homólogo aos movimentos da agulha que borda.
A homologia técnica entre gravura e bordado pressupõe a imanên-
cia de dois devires, o tornar-se gravura do bordado, o tornar-se bordado
da gravura. O cruzamento dos dois devires reafirma a estética geral em
que a arte de Heloisa se produz e, por desconsiderar precedências e hie-
rarquias, nenhuma das duas artes se erige como modelo ou referência
da outra; também, como alheia a normas, essa estética não unifica as ar-
tes sob princípios comuns, que as transcendam e, com isso, as reduzam
a aplicações ou derivações. Viu-se acima que, tecnicamente, a gravura e
o bordado se entre-explicam, o que situa o maravilhoso no cruzamento
de ambos enquanto contrastados, sem referência à metamorfose, que
neste plano não há. É admirável que, tecnicamente, o buril de Heloisa
explicite a singularidade de seu bordado e, em troca, que este ponha em
evidência a particularidade da ação daquele. A execução de uma arte
com as características da outra sem reducionismo de parte a parte hi-
perboliza as duas, dramatizando-lhes os efeitos; o maravilhoso irrompe
na saturação da matéria, tanto na gravura quanto no bordado, o que se
atribui tecnicamente à repetição do gesto, buril ou agulha, intensifica-
dora do procedimento específico de cada arte, que se hiperboliza.
Enquanto, no plano da técnica, os devires nas duas artes alheiam
as metamorfoses por se restringirem discursivamente às coincidências
e repetições, tudo se altera com a fala: o maravilhoso se amplia com a
iconografia, cuja retórica se distingue da operante na técnica. É indicial
que, nesta, o discurso de Heloisa se limite ao instrumental dos preceitos
e, como a fala se caracteriza como ficção, no recorrente contraste entre
os dois pólos o exterior ocupado pela matéria ou pela técnica ou pela
obra, e o interior, tomado pela reflexão ou pelo afeto ou pela demanda, os
termos contrapostos relacionam-se projetivamente como passagens de
um dentro para um fora. Nessa articulação subjetivante, a fala, instância
da interioridade, é envolvente como demandante e sentimental, enco-
brindo a arte e seu discurso do verossímil o halo fascinante da amplifi-
cação. Por isso, à diferença dos devires discursivos das gravuras feitas
com buril e dos tecidos realizados com bordados que se entre-explicam
em hialinos abismos de verossímeis, os falados disseminam as meta-
morfoses, que as homologias entre as técnicas desconhecem, restrin-
gindo-se à calcografia, hiperbolizada na fabulação. Duas retóricas, pois,
se produzem, a do discurso operante na técnica e a da fala que, a essa
reduzindo à condição de instrumento, envolve a iconografia.
123 revista ieb n48 março de 2009
mir – já que você não quer dormir, você vai fazer coisas, você
não vai ficar: ‘a vida é uma tragédia... o mundo é uma tragé-
dia... porque esse governo... e eu não posso falar’, ou isso, aquilo,
aquilo outro, ‘porque aquele cara foi preso, o outro sumiu, o ou-
tro foi torturado...’ ” Você sabia tudo nas entrelinhas, “não: você
vai trabalhar, você vai desenhar, você vai fazer gravura, você
vai tentar pôr para fora tudo”. Eu trabalhei tanto, tanto, tanto
que acho que foi por isso que acabei ganhando a tal bolsa para
ir a Portugal. Eu saí do Brasil em negra crise de depressão... só
lá fui sair disso e nunca mais voltei. Depois, fiz o sofrimento da
América Latina, quando já não tinha mais depressão; o que eu
tinha era um sofrimento pelo sofrimento do nosso povo. […] Está
dentro de você a força; não vai ser o outro que vai te educar, vai
ser você que vai se educar, você é que vai se lapidar, você é que
vai se limpar e vai crescer e vai brilhar. Com o outro você vai
ter um diálogo e vai crescer com ele, lógico, porque ele vai te
alimentar... Não foi sozinha que eu cresci.13
8 Quando comecei pintando e desenhando – eu mexia com arte
desde pequena e pintava muito e desenhava, não fazia gravu-
ra – tinha muito a questão dos pontos que eu fazia: dos pontos
rebuscados, os detalhes de um ponto... Quando comecei a fazer
gravura, era fruto dessas pinturas que não tenho mais. Essas
gravuras eram como se fossem elétricos: tinham pontos e uma
coisa de energia que ia girando para um outro ponto, era um
ponto em relação a outro ponto... Quando comecei a fazer uns
pássaros, não sei porque eu os comecei, eles sempre iam em di-
reção a um ponto: uma claridade, um túnel... Havia alguns que
estavam dentro de uma coisa. Cheguei a um ponto em que não
fiquei mais interessada em fazer essas duas coisas juntas, pontos
e pássaros: “agora eu quero pássaros numa e pontos na outra”.
Mas eu não poderia dizer que esses pontos das primeiras gra-
vuras eram sóis: é como se os pássaros fossem para um lugar,
para um todo, para uma claridade. Quando os separei, vi que os
pontos existiam no espaço e, no espaço, eles viraram sol.14
13 Idem, ibidem. p. 17-18.
14 Idem, ibidem. p. 15-16.
124 revista ieb n48 março de 2009
A demanda tem na fala, por seu apelo político e terapêutico, a evi-
dência do ficcional. É neste plano, não no dos discursos da técnica, que a
retórica se estende além da limitada às referidas repetições saturadoras,
pois joga com a iconografia: ultrapassando as restrições da técnica, na
qual domina a presença, a retórica opera com a ausência, constitutiva da
descrição epidítica e do chamamento deliberativo, ligados não só à evi-
dência e à moção, respectivamente, mas também aos devires enquanto
seus focos. Pois, estes balizam as passagens entre o mostrado e o movido
nos dois sentidos, no que a Heloisa protagonista se eleva como testemu-
nha e como doadora. Como não se trata, nessa narração épica, da fala
constituidora da subjetividade, mas da dos feitos em que triunfa a luz
sobre a treva, expostos na ação dos personagens que desfilam no campo
dos eventos gerados de contrastes e metamorfoses, os devires se enun-
ciam fabulosamente. Mas, além da fala, que tudo envolve, há as gravuras
e sua iconografia, no que a instrumentalidade da técnica contribui para
fazer ressaltar a retórica, não, decerto, a restrita à saturação material,
mas a que joga com os referidos focos. Essa retórica é a das passagens
de um gênero a outro, presidindo a ambos a ausência, seja a epidítica
seja a deliberativa, diferentemente da preceptiva do verossímil, em que
a matéria é presença.
Envolvendo as gravuras em halo, a fala maravilha, assim, com a
deliberação sobre a luz que deve vir e a treva a ser removida, mas tam-
bém faz admirar tal ausência no deliberativo com a descrição epidítica
do absconso. Louvadora na demanda da fala ou vituperadora na recusa
do silêncio imposto pela ditadura do capital financeiro e seus quartéis,
a gravura, na aura, embora não descreva, também evidencia; a similari-
dade do ente e do mapa em lances gráficos, como nos das coincidências
de contornos, disseminações de signos, formas blasonadas, não anula o
arbítrio na significação maravilhosa, não o suspendendo tampouco os
tentames da etimologia. São as passagens entre o epidítico e o delibe-
rativo que definem o plano retórico de Heloisa; como, entretanto, os gê-
neros não são por ela considerados, captam-se vestígios das operações a
eles atribuídas em devires, metamorfoses e contrastes que evidenciam
a fala no circuito das fabulações. Iconograficamente, é a fala que, ve-
lando o discurso procedimental da gráfica, faz nesta fabular, sem, con-
tudo, anulá-la, pois a técnica remanesce como instrumento com a sua
específica retórica material. Como a fala não suprime a técnica, mas a
oculta enquanto presença ao discurso, a ausência, como constitutiva dos
gêneros epidítico e deliberativo, é desencadeante do devir entre seus
focos. Este trânsito é circular, implicando o fechamento dos devires so-
bre si mesmos; o gráfico é, por isso, retorizado como evidência e palavra
125 revista ieb n48 março de 2009
9 Eu acho que essa coisa de expandir é o crescimento da gente
que se reflete na arte, porque, quando me recolho, vou buscar
os subsídios para falar e, na hora que vou falar, a coisa já está
grande, até escapa de mim... Um papel de gravura, uma tela,
um bordado são pedacinhos da nossa cabeça. Se fosse possível
fotografar ou retratar o que passa na cabeça, não se tinha uma
gravura ou duas, ter-se-ia milhares... mas não se pode pegar
aquilo, não tem como! Eu tento figurar isso colocando em uma
gravura pontos da sensibilidade desse mundo interior: na gra-
vura, na pintura, no bordado, no desenho, na aquarela.15
10 Essa época era muito tumultuada; isso antes dos mapas. Eu era
muito angustiada, tinha muito sofrimento, tinha crises até de
suicídio: não tinha razão de viver. Eu era muito complicada,
mas, enfim... Fico vendo esses sóis e... “o quê será que havia
naqueles poemas do Tiago de Melo?”, porque eram poemas po-
líticos. Ali ele falava da nossa situação - nós estávamos em ple-
na época da ditadura, era 78, 77 - e, nessa época, em tudo que
fiz coloquei essas diversas formas de sóis. Eu queria dizer com
esses sóis que há luz dentro nós... há luz. Eu podia ser negra,
como era, mas tinha que ter um outro lado.
Eu saí do Brasil em negra crise de depressão... só lá fui sair
disso e nunca mais voltei.
Depois, fiz o sofrimento da América Latina, quando já não ti-
nha mais depressão; o que eu tinha era um sofrimento pelo
sofrimento do nosso povo. Eu era consciente de tudo o que pas-
sava, por isso chorava... […] Nem sei quantos sóis eu fiz, foram
saindo. Fiz um sol todo em buril, com um centro muito delica-
do, de muita sutileza: eu queria que fosse de muita sutileza o
centro desse sol porque era como se fosse o centro de cada um,
de cada ser humano, e ali é muito delicado. Dentro de cada um
é onde tem a vida, onde vai brotar a esperança. É onde você vai
criar, onde você vai inventar, onde você vai até poder ter forças
para quebrar essa opressão de fora que te esmaga.
Essa história dos sóis, que eu acho que eles andam, eu diria
que são três tipos de sóis: os sóis de 78, de 79, de 77; os sóis
15 Idem, ibidem. p. 10.
126 revista ieb n48 março de 2009
de ordem, metamorfoseando-se a fala em cada foco. Veladas, a gráfica,
como iconografia, e a retórica, como dois gêneros altos, explicitam-se
na figura do dialogismo, pois a passagem de foco a foco não pressupõe
primeiros e segundos, não havendo gravura que seja ilustração da fala,
nem fala que dê a razão, também como instrumento, da gravura. É esse
dialogismo que estabelece o processo que vincula a retórica, a técnica e
a iconografia na fala de Heloisa.
Comandando a passagem entre os gêneros, a retórica de Heloisa
avança uma iconografia alegórica do político, lugar outro da ausência
sobre a qual se delibera e se descreve na fala épica cruzada pela signifi-
cação gráfica. Sendo também alto o gênero da epopéia, tal alegorização
traz, da fala, um outro caráter, cuja altura é a dos engendramentos, dos
ortos, dos nascimentos: tratando-se da ausência, uma cosmogonia fabu-
losa reveza a política ficcional. A cosmogonia como a outra cena da au-
sência constitui-se com os devires e as metamorfoses de mil entes e mil
classes, cuja heterogeneidade a semantização político-terapêutica torna
homogênea. Da ausência, a gravura e a fala que a aureola nunca, con-
tudo, se podem positivar, produzindo a inacessibilidade maravilhas na
intersecção das operações projetadas nos três planos acima referidos.
A dimensão épica da personagem, não a cosmogônica dos elemen-
tos, distingue a memória, pois são mnêmicos os efeitos historiais em He-
loisa, o que decorre da proeminência da interioridade como pólo radian-
te da narração. Em várias passagens, a artista categoriza a rede de seus
argumentos com as noções recíprocas de interioridade e de exteriorida-
de, projetivamente articuladas. Relacionando-se como espaços, interio-
ridade e exterioridade configuram-se geometricamente como os pontos
com o quais tudo se inicia, segundo a rememoração de Heloisa; nem na
gravura nem no bordado, mas no desenho ou na pintura, de acordo com
a sucessão temporal mnemicamente construída, os pontos surgem, em-
bora, por inexistentes, as obras não possam confirmá-lo, ficando o leitor,
quanto a essa assertiva, com a fala da artista. É nesta que o ponto, como
hipérbole, explode; referência, faz ressaltar as amplificações: a numéri-
ca, na qual se dissemina, como nas nebulosas, a expansiva, na qual cres-
ce como no sol, e a diminutiva, na qual se escancara, complexo, na evi-
dência contraditória de pormenorizações e rebuscamentos. Labiríntico,
o ponto devém, dividido, entre o infinitamente grande e o infinitamente
pequeno, campo de metamorfoses no qual Heloisa diz, em paradoxo pro-
liferante, sua ficção enleadora do contínuo e do discreto (8).
Os pontos tornam-se pássaros, sóis [Fig.6], nebulosas [Fig.7], pois
labirínticos por se dividirem em si mesmos, apresentam-se como noções
que interceptam o paradoxo e a contradição, afastando-se dos elementos
127 revista ieb n48 março de 2009
de 83, dos quais um vai fazer a passagem entre esses mapas,
porque já vinha a coisa do dinheiro, e um outro que não tem
dinheiro, mas tem a estrela; tem ainda os que faço atualmente.
Na verdade, nem sei se são sóis, acho que são muito mais co-
metas... são nebulosas, são coisas do espaço, mas são coisas do
espaço meu, interno...16
11 Durante muitos anos, fiz, na pintura, centros de alguma coisa,
como se fossem labirintos indo dar em algum ponto. Verdadei-
ra contradição, labirinto e centro, não? Eu não conseguia en-
tender muito porque tinha que fazer essas coisas. De repente,
começaram a surgir figuras humanas, sempre ligadas a algum
centro. Os labirintos desapareceram, surgiram no lugar deles
as figuras em busca de um centro e depois começaram a vir os
bichos que iam para algum centro também. Eram uns pavões
bem elegantes e todos cheios de penugem. Trabalhei esses pás-
saros em desenho, pintura, gravura e tecido. Eram pássaros
imensos, todos cheios. Sempre havia centros em volta e esses
centros se tornaram centros mesmo. Depois, eles se tornaram
sóis e luas. Eu tinha gravuras chamadas Sol Negro, Sol Ver-
melho, Sol Amarelo. E começaram a desaparecer as texturas
rendadas dos bichos. Os bichos começaram a ficar quase sem
plumagens e as plumagens se transferiram para galhos que
surgiam interferindo com os bichos. Esses bichos continuaram,
desapareceram todos os galhos, ficaram sozinhos e ficaram os
sóis sozinhos. Comecei a trabalhar nos sóis que apareceram
em céus. Eu vou penetrando nas coisas e vai acontecendo a
transformação.
Esses sóis se expandiram no espaço.17
12 Tenho uma gravura que é um dragão: “México”. É um dragão,
a cara do dragão, o rabo do dragão, mas esse dragão, no dese-
nho, não era dragão. Sempre faço o desenho no papel vegetal,
16 Idem, ibidem. p. 16-19.
17 FERREIRA, Heloisa Pires; LUZ, Maria Luiz (Coord.). Gravura brasileira hoje: depoimentos. Rio de Janeiro: Oficina de Gravura Sesc Tijuca, 1997. v. 3, 123-124.
128 revista ieb n48 março de 2009
da geometria euclidiana. Esses elementos ou, como lhes chama a artista,
“pedaços interiores”, são, como se referiu, por ela qualificados de rebus-
cados, detalhados, expandidos. Por ignorarem o paradoxo e a contradi-
ção no plano gráfico, tais pontos lançam em seus labirintos a maravilha
como fabulação da fala, atribuída unicamente à interioridade, uma vez
que não podem ser “pegos ou fotografados”, como diz a artista (9). Noção
elementar da fala, o ponto, como historial, inscreve-se retoricamente no
gênero alto, não no domínio da deliberação, mas no da demonstração.
É por isso que Heloisa o determina de muitos modos, podendo ressal-
tar-se, metaforicamente, o gravitacional, que, na proposição do campo
elétrico, atrai outros seres com os quais devém, estabelece contrastes e
opera metamorfoses. Mais, porém, do que física, a energia do ponto, no
atrair seres, metamorfoseia-se em túnel e luz [Fig.8], epidítica maravi-
lha, pois, também, quando se expande, faz surgir sóis, os quais, por sua
vez, se disseminam e, pletora de pontos, tornam-se nebulosa, como se
viu (10). Mas o devir não afeta somente o ponto, pois também os seres
atraídos sofrem metamorfoses, como os pássaros, que, quando em re-
lação a ele autônomos, tornam-se montanhas, árvores, fantasmas (11).
Assim, nos devires, as metamorfoses são irredutíveis à homogeneidade
e à linearidade; considere-se o devir recíproco entre pássaro e árvore
[Fig.9], um se metamorfoseando no outro: nesta fala, há visionarizador
porque o olho não se instala na comodidade da hierarquia visual em que
um termo é o que devém e o outro, o que deveio.
Há, também, devires de afetos, como nos mapas, em que as me-
tamorfoses seguem ora a linha da dor, ora a do júbilo: obra da gráfica,
tanto da que, tecnicamente, faz preponderar o buril quanto da que torna
proeminente a água-tinta, nas quais a similaridade da forma dialoga
com a hipérbole da fala, cortada pela política. Nesses devires, Heloisa
fala sobre seu luto e sua esperança no concernente à América Latina;
enquanto os primeiros mapas são de dor, como no da Argentina [Fig.10
– Pedaço da América], pintalgada dentro e fora das fronteiras por signos
que a artista qualifica de caveiras, nos ulteriores é o júbilo que explode,
como no mapa do México, no qual o desenho cartográfico se metamor-
foseia em desenho animalista, iluminando-se como alegoria de renas-
cimento a metamorfose do mapa em dragão (12). A partir da cartografia
animalista do México, segue-se a figuração dos Estados do Brasil que
proclama, também ela, afetos afirmativos nas metamorfoses amorosas
de bichos, de que o Estado de São Paulo [Fig.11] é bom objeto.
Recebido em 15 de março de 2008
Aprovado em 11 de julho de 2008
129 revista ieb n48 março de 2009
não desenho um projeto de gravura arrumadinho e escrevo ao
lado dele todo o resto que vier à minha cabeça. Eu sabia que
em alguns mapas tinha que colocar a roda dos ventos, as siglas
dos países, o dinheiro no centro de algumas roda dos ventos,
que era o que estava girando... Fiz o “México” como uma car-
ta antiga: antigamente os mapas tinham essas marcações que
pus nele. Nos mapas muito antigos o mundo não era redondo,
era plano, no caso, o “México” é plano... Em nenhum mapa que
faço, a figura fica como está na carta: sempre que você olha o
Brasil a parte fina está embaixo. A minha visão não era assim,
de nenhum país da América Latina, porque, na verdade, não
tem um lado para você olhar. O lado que eu tinha para olhar
antes, que eu nem olhava, era aquele Brasil ali, e eu nem sabia
o que acontecia no resto do continente. Depois que estudei isso,
fui mudando tudo: virei, então, aquela figura do México e pas-
seei com ela até que me aparecesse um dragão.
Nos outros, tinha muito a coisa da caveira: tinha a caveira da
Argentina, porque eu também estava chorando a morte dela.
Eu via a cultura morrendo, o amor morrendo, o respeito hu-
mano morrendo, porque só o dinheiro valia. O que vale é uma
meia dúzia de fulanos que têm não sei quantas casas, que não
sei para que servem, não sei quantos carros, que não sei para
que servem, e não sei quantos empregados, que não sei para
que servem.... Na verdade, quando se deita numa cama para
dormir, deita-se em uma cama, não é preciso ter oitenta ca-
mas. Inclusive atrapalha! Atrapalha o teu centro de energia.
Eu via que muitos dessa América Latina inteira não têm cama:
dormem no chão, na terra, debaixo da marquise, sei lá onde
dormem.
Quando cheguei ao “México”, ele virou um dragão; falando
hoje, vejo que o dragão é um mito que resgata: é como se, de
repente, ele começasse a dar vida aos outros países. Eu já tinha
a esperança de que as coisas não só morressem, mas que elas
também pudessem renascer, como o dragão das cinzas. Então,
essa cultura podia voltar, não sei como, mas podia voltar pelo
menos dentro da minha esperança, e foi ali que se abriu o ca-
minho para as gravuras que vieram depois.18
18 FERREIRA, Heloisa Pires. Entrevista concedida a Mayra Laudanna. Cotia: Ateliê
Editorial, 2001. p. 12-14. (Entrevista de Artista).
130 revista ieb n48 março de 2009
 

Sem título ( pássaro verde)
FERREIRA, Heloísa Pires

ponta seca, s.d.
38.0 x 55.5cm



131 revista ieb n48 março de 2009

Constelação
FERREIRA, Heloísa Pires
Xilogravura e gravura em metal, s.d.
49,2 x 49,1cm

132 revista ieb n48 março de 2009
Sem título (Sol Violeta)
FERREIRA, Heloísa Pires
água-forte, s.d.  ( correto: Buril)
29,5 x 29,8 cm

133 revista ieb n48 março de 2009 

Sem título (Portas abertas)
FERREIRA, Heloísa Pires
água-tinta colorida, s.d. (correto buril)

20,0 x 22,4cm


134 revista ieb n48 março de 2009

Sem título  (São Paulo)
FERREIRA, Heloísa Pires
água-tinta colorida, s.d. (correto Buril, água tinta e ponta seca)
39 x 59,2cm


135 revista ieb n48 março de 2009
Sem título ( Sol Mostarda)
FERREIRA, Heloísa Pires
água-tinta sobre papel, s.d.
39,2 x 39,5cm


136 revista ieb n48 março de 2009

Sem título (Pica pau)
FERREIRA, Heloísa Pires

bordado em tecido, s.d.
30.5 x 44,2cm

137 revista ieb n48 março de 2009
Sem título
FERREIRA, Heloísa Pires
água-tinta colorida, s.d. (correto águas forte e tinta)
39 x 59,5cm

138 revista ieb n48 março de 2009
Sem título (Veado)
FERREIRA, Heloísa Pires
água-forte e ponta-seca, s.d. (Correto:  ponta seca)
66 x 41,5cm


139 revista ieb n48 março de 2009
Pedaço de América
FERREIRA, Heloísa Pires
água-forte e água-tinta colorida, s.d.
29,9 x 29,5cm
140 revista ieb n48 março de 2009
Sem título (
FERREIRA, Heloísa Pires

bordado em tecido, s.d.

58,4 x 45,5cm

Lançamento da Revista ieb 48 - dia 23/04/ 2009 
quinta-feira ás18:00
Local: Instituto de Estudos Brasileiros
Av.: Professor Mello Morais, trav. B, 140
Cidade Universitária, São Paulo - SP.


 

 

 



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